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    • Guia rápido sobre dinheiro móvel e crimes financeiros

      Andrew Dornbierer, Asset Recovery Specialist, Basel Institute on Governance

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      A elevada quantia de dinheiro que flui nos sistemas de pagamento móvel, tais como M-Pesa, MTN Mobile Money e Orange Money, disparou, em parte por causa do confinamento devido à Covid-19. Deveríamos estar preocupados com a utilização de dinheiro móvel nos crimes financeiros? Se bem que muitos acreditem que os montantes envolvidos são demasiado insignificantes para terem algum impacto, outros consideram que os sistemas são susceptíveis de abuso por parte do crime organizado ou acreditam que favorecem o comércio ilegal de divisas.

      Eis as regras básicas de como os sistemas de dinheiro móvel podem ser utilizados de forma abusiva para fins de branqueamento de capitais e corrupção. Com base na experiência no terreno na África Subsaariana, também descrevemos em linhas gerais a forma como os agentes da lei podem tirar partido deste método muito comum de pagamento para detectar esquemas de corrupção e branqueamento de capitais e prová-los posteriormente em tribunal. 

      O quê, o como e o porquê dos pagamentos móveis

      Para a maioria dos indivíduos e empresas em países com uma taxa de penetração bancária reduzida, particularmente em África e na Ásia, os sistemas de dinheiro móvel substituíram tanto o dinheiro vivo, como as contas bancárias. 

      Em vez de pagar com dinheiro as suas despesas nas lojas, bancas de mercado e restaurantes, os clientes podem simplesmente transferir o montante através do seu telemóvel. Isto significa que não é necessário andar com muito dinheiro no bolso, evitando assim a preocupação de ser roubado. As pessoas também podem emprestar e enviar dinheiro instantaneamente por telefone, um sistema muito conveniente para os trabalhadores de áreas urbanas enviarem dinheiro para as suas famílias que vivem em aldeias distantes. 

      À medida que as empresas maiores iam aderindo à iniciativa, muitas pessoas começaram a pagar as suas contas de energia, água e televisão através do telemóvel. Inclusivamente, as empresas começaram a pagar os salários através destas plataformas e estão a abrir-se novas possibilidades de pagamento móvel. A maioria dos fornecedores oferecem agora outros serviços como levantamento de dinheiro, transferências para contas bancárias e transferências internacionais.

      Por que razão os pagamento móveis se tornaram tão populares na África Subsariana?

      Estima-se que, em 2019, a África Subsariana tenha sido responsável por mais de 60% dos 690 biliões de dólares em transacções com dinheiro móvel, a nível mundial. Em parte, isto deve-se ao facto de, numa região com um vasto sector informal e uma baixa penetração da banca formal, as barreiras à abertura de uma conta de dinheiro móvel serem muito baixas. 

      Existem vários sistemas de pagamento móvel, que são normalmente disponibilizados por bancos ou por empresas de telecomunicações. Para sistemas básicos de telecomunicações, o utilizador só precisa de um cartão SIM, um telemóvel que funcione e uma conta com um fornecedor. O envio de dinheiro pode resumir-se ao simples acto de introduzir um número de telefone e o montante a transferir. O provedor cobra uma pequena taxa por cada transacção. 

      Esta facilidade e rapidez fazem com que os sistemas de pagamento móvel sejam perfeitos para micropagamentos e para proprietários de pequenas empresas. A indústria é responsável por permitir que milhões de pessoas sem conta bancária tenham acesso, pela primeira vez, aos mercados financeiros. 

      Dinheiro rastreável e perfil do estilo de vida 

      Nos países onde os sistemas de pagamento móvel são amplamente utilizados, os investigadores financeiros têm à disposição uma rica fonte de informação. Através dos registos obtidos junto dos fornecedores é possível localizar todas as transacções relacionadas com um número de telemóvel, tais como envio, recepção, carregamento de dinheiro na conta ou levantamento. Por sua vez, os números de telemóvel estão associados a indivíduos ou empresas que registaram a conta, embora estes possam ser, evidentemente, nomes falsos e empresas de fachada.

      Os investigadores podem consultar estes registos para ficarem com uma boa noção do estilo de vida de uma pessoa. Onde é que fazem compras e onde comem fora? Quanto é que gastam e que tipo de lojas frequentam? Pagam o pacote mais caro de televisão por cabo, talvez até para mais do que uma residência.

      Esta informação pode fornecer provas indirectas de corrupção ao revelar uma discrepância entre o nível de vida de uma pessoa e o seu rendimento declarado. Pode também ser utilizada como prova directa para casos de riqueza injustificada, também conhecido como enriquecimento ilícito.

      Revelação de novas pistas

      Para além de dar uma imagem do estilo de vida de um suspeito, os registos de pagamentos móveis podem dar aos investigadores novas pistas vitais e ajudar a descobrir activos escondidos. Se um suspeito paga uma conta de TV por cabo, o investigador pode obter o endereço ligado a essa conta junto do fornecedor de serviços de televisão por cabo. Talvez estejam a pagar mais do que uma conta de TV por cabo ou de electricidade. Quantos bens possuem, mesmo que não estejam em seu nome? 

      Estes registos também podem ajudar a descobrir redes de pessoas potencialmente envolvidas em esquemas de pequena corrupção, expondo um panorama de como os indivíduos nestas redes partilhavam comissões entre si ou transferiam os lucros segundo uma hierarquia estabelecida. 

      Riscos associados aos crimes financeiros 

      Os sistemas de dinheiro móvel podem ser utilizados de forma abusiva para branquear capitais de modo semelhante às contas bancárias. Uma pessoa pode criar inúmeras contas diferentes com facilidade e rapidez, recorrendo a nomes falsos, ou usando o seu próprio nome, e transferir dinheiro entre essas contas para despistar os investigadores. 

      Do mesmo modo, podem levantar dinheiro e enviá-lo novamente para uma conta diferente. Também existem plataformas que permitem aos utilizadores converter dinheiro móvel em criptomoeda e vice-versa, tais como a BitPesa do Quénia. Basta efectuar estas simples operações várias vezes e obtém-se uma cadeia monetária muito emaranhada. 

      Outra artimanha é criar uma empresa que aceita pagamentos móveis e arranjar clientes falsos que fazem pagamentos a esta empresa fictícia. Este mecanismo não é novidade, mas o uso de dinheiro móvel simplifica o processo e reduz o risco de se ser apanhado. 

      Os suspeitos envolvidos em crimes mais graves e esquemas de corrupção transpõem muitas vezes as fronteiras, transferindo dinheiro de um país para outro. Posteriormente, os investigadores enfrentam os mesmos desafios em matéria de cooperação internacional, como com qualquer outra investigação transfronteira, com vista a obter informações sobre essas transacções financeiras. 

      Passar despercebido 

      De uma forma geral, os sistemas de pagamento com dinheiro móvel limitam o montante de dinheiro que pode ser transferido numa transacção, ou num dia, a algumas centenas de dólares. Muitos também limitam a quantia máxima de dinheiro que uma conta pode ter. Assim, é pouco provável que um pagamento ou conta móvel desencadeie uma comunicação de operações suspeitas a uma unidade de informação financeira, mesmo que, ao abrigo da legislação desse país, o fornecedor de pagamentos móveis seja uma entidade designada. 

      É fácil os criminosos esquivarem-se ao controlo dos procedimentos de vigilância referentes a “conhecer o cliente” (KYC na sigla em Inglês, que significa Know Your Customer) através da compra de vários cartões SIM, usando identificações falsas ou digitalizadas, ou cometendo usurpação de identidade. É muito simples obter cartões SIM no mercado negro. Por exemplo, em 2019, as autoridades quenianas apreenderam 40.000 cartões SIM e vários telemóveis numa rusga efectuada a dois apartamentos. 

      Tendo vários cartões SIM e diversas contas de pagamento móvel, é possível transferir facilmente grandes quantias de dinheiro em parcelas de pequenos pagamentos individuais. Num caso de fraude com dinheiro móvel, em 2013, envolvendo a MTN Uganda, por exemplo, foram roubados cerca de 850.000 dólares americanos em sete transacções de menor valor e transferidos para 138 contas de utilizadores antes de serem levantados em dinheiro ou fichas (ver acórdão do Tribunal: Uganda v Sserunkuma & 8 Others). 

      Dois anos antes, no caso Uganda vs Ssentongo, funcionários da mesma empresa roubaram cerca de 2.4 biliões de dólares americanos ao longo de seis meses, explorando fragilidades nos processos KYC e nos sistemas informáticos. 

      Sabe-se que os grupos transnacionais de crime organizado utilizam redes sofisticadas de contas para transferir rapidamente os pagamentos e proventos dos seus crimes através de um elevado número de pequenas transacções transfronteiriças.

      Contra-atacar através de investigação financeira 

      Apesar da prevalência de plataformas de dinheiro móvel e da possibilidade de ocorrência de abusos de corrupção e branqueamento de capitais, muitas agências de investigação financeira ainda não incluem sistematicamente este aspecto nos seus protocolos de investigação. Devem fazê-lo.

      Os registos de pagamentos móveis podem revelar uma grande variedade de informação sobre o estilo de vida, rendimentos, activos e redes de um suspeito. Como quaisquer outros documentos comprovativos financeiros, estes registos devem ser aceites em tribunal sem qualquer oposição. 

      Além disso, um enfoque específico e mais sistemático sobre os pagamentos móveis - juntamente com outros novos produtos e serviços pertinentes de pagamento, tais como serviços de pagamento através da Internet e criptomoedas - ajudará a reforçar a capacidade de resistência de um país ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo. Para mais informações sobre este assunto, ver as recomendações do Grupo de Acção Financeira (GAFI), incluindo as Orientações para uma Abordagem Baseada no Risco relativas a Cartões Pré-pagos, Pagamentos Móveis e Serviços de Pagamento através da Internet, de 2013 (Guidance for a Risk-Based Approach to Prepaid Cards, Mobile Payments and Internet-Based Payment Services) e as Medidas de Combate ao Branqueamento de Capitais e ao Financiamento do Terrorismo e Inclusão Financeira de 2017 (Anti-Money Laundering and Terrorist Financing Measures and Financial Inclusion).

      A pesquisa sistemática dos registos de pagamentos móveis é uma das boas práticas em que os nossos peritos do International Centre for Asset Recovery estão a trabalhar, no sentido de a integrar nos procedimentos normalizados de investigação financeira das nossas agências parceiras, em países onde esta prática constitui uma via pertinente para a investigação.

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