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Guia rápido sobre estruturas offshore e beneficiário efectivo
Phyllis Atkinson, Head of Training ICAR, Basel Institute on Governance
Também disponível em: English, Español
Os esquemas de branqueamento de capitais envolvem muitas vezes redes de transacções e estruturas complexas que permitem o disfarce, a dissimulação e o anonimato, e transcendem as fronteiras internacionais. A utilização de veículos ou “estruturas” empresariais é uma das vias mais comuns de branqueamento de capitais para fazer crer que provêm de uma fonte legítima.
No entanto, muito embora os grandes casos de corrupção e branqueamento de capitais tenham frequentemente uma dimensão internacional e envolvam esquemas extremamente complexos, os investigadores e os procuradores geralmente têm pouco conhecimento dos veículos empresariais utilizados no estrangeiro e muitas vezes carecem dos recursos necessários para obter provas de outras jurisdições. Estas dificuldades são agravadas quer pela diversidade de sistemas jurídicos e terminologia, quer pela utilização aleatória de termos como “paraíso fiscal” e “jurisdição com sigilo bancário”.
Este guia rápido analisa a forma como os criminosos conseguem conferir um verniz de respeitabilidade e explorar o sigilo através da manipulação e utilização indevida de veículos empresariais em jurisdições offshore. Incide sobre o significado de “veículo empresarial” e “offshore” e outros conceitos associados, como por exemplo beneficiário efectivo. Apresenta também um exemplo de como um fundo fiduciário, um tipo comum de veículo empresarial no vasto “Universo offshore”, pode ser utilizado para fins ilícitos.
O que é um veículo empresarial?
Fundamentalmente, “empresarial” significa relativo a empresa. Do ponto de vista legal, as empresas são reconhecidas como entidades juridicamente independentes em resultado da existência de um véu de separação fictício entre a empresa e os respectivos accionistas ou sócios. Este “véu corporativo” isenta as pessoas que estão por detrás da empresa da responsabilidade pessoal. O véu corporativo é quebrado quando:
- Em primeiro lugar, se conclui que os respectivos accionistas ou sócios controlam as suas finanças e negócios de tal forma que deixa de se poder considerar que a sociedade tem vontade ou existência próprias.
- Em segundo lugar, o controlo resultou num acto criminoso, desonesto ou ilícito que causou perda ou dano injustos.
Os veículos empresariais, incluindo empresas, fundos fiduciários, fundações, parcerias com responsabilidade limitada e estruturas semelhantes, tornaram-se uma componente integral e indispensável do moderno panorama financeiro global. No entanto, conforme salientado pelo Grupo de Acção Financeira (GAFI) há anos, os mesmos podem ser explorados para fins ilícitos, incluindo branqueamento de capitais, suborno/corrupção e apropriação indevida de fundos públicos.
Os criminosos conseguem ser extremamente criativos, utilizando diversas técnicas e mecanismos para dissimular a sua propriedade e o controlo de activos obtidos ilicitamente. A dificuldade dos profissionais é conseguir “ver através” do véu corporativo estabelecido pela estrutura para identificar o controlador e o beneficiário efectivo final.
Centros financeiros offshore – o que são e onde estão?
Embora o termo “offshore” não seja definido pelo GAFI, no âmbito dos veículos empresariais, offshore significa algo localizado ou sediado num país estrangeiro. É normalmente utilizado para descrever bancos, fundos fiduciários, empresas, investimentos e depósitos no estrangeiro.
Embora uma empresa possa ser deslocada para o estrangeiro de forma legítima para fins de elisão fiscal (legal) ou para beneficiar de regulamentações mais flexíveis, as estruturas offshore podem também ser utilizadas para fins ilícitos, tais como branqueamento de capitais e evasão fiscal. Isto aplica-se especialmente a estruturas como empresas, parcerias ou fundos fiduciários, constituídos em centros financeiros offshore (OFC - na sua sigla inglesa).
Os OFC são jurisdições em que os veículos empresariais são utilizados principalmente por não-residentes. Incluem centros sobejamente conhecidos como a Suíça, as Bermudas e as Ilhas Caimão, e centros menos conhecidos como as Maurícias, Dublin e Belize. O nível de normas de regulamentação e de transparência difere consideravelmente entre os OFC.
A importância das jurisdições offshore no contexto de investigações criminais é a forma como algumas oferecem um elevado segredo aos seus veículos empresariais, criando assim um ambiente favorável à sua utilização para fins ilícitos.
Como são utilizados os veículos empresariais para fins criminosos?
Os veículos empresariais desempenham muitas vezes um papel fundamental na dissimulação dos proventos da corrupção, do branqueamento de capitais e do beneficiário efectivo de activos ilícitos.
Os funcionários públicos corruptos e os branqueadores de capitais não querem manter o dinheiro sujo em seu nome. Portanto, o que normalmente fazem é criar uma empresa - ou várias empresas - e tê-la(s) como proprietária(s) dos seus activos. A empresa pode abrir uma conta bancária, comprar um iate ou uma mansão, e transferir dinheiro, por via electrónica, para qualquer parte do mundo. Nas jurisdições offshore que asseguram um elevado segredo aos seus veículos empresariais, é imensamente difícil, e por vezes totalmente impossível, fazer o rastreio do dinheiro até ao seu verdadeiro proprietário. Assim, estes veículos são um mecanismo apelativo para esconder, movimentar e utilizar dinheiro ou outros activos obtidos ilicitamente.
Existe uma grande variedade de veículos empresariais nas diversas jurisdições. Por vezes, têm o mesmo nome ou nomes semelhantes, mas características diferentes, ou características semelhantes, mas nomes diferentes. A breve descrição que se segue de três estruturas habitualmente utilizadas - empresa fantasma, empresa fictícia e fundo fiduciário (segundo a tradição do Common Law inglês) - destina-se apenas a dar uma ideia de como as estruturas offshore podem ser utilizadas de forma abusiva.
Empresa fantasma
Uma empresa fantasma pode ser definida como uma empresa não operacional, ou seja, uma entidade jurídica sem actividades independentes, activos significativos, actividades comerciais em curso, nem empregados. Regra geral, um intermediário profissional providencia uma empresa fantasma a uma entidade corrupta, que depois a utiliza para esconder o rasto do dinheiro, transferindo os fundos ilícitos de e para as contas bancárias da empresa.
Uma empresa fantasma é uma entidade sem presença física na sua jurisdição. O seu objectivo principal ou único é proteger o verdadeiro beneficiário (beneficiário efectivo final) de impostos, divulgação de identidade ou ambos. As empresas fantasma são também referidas como empresas fictícias ou empresas de «caixa de correio» (letterbox companies). Um tipo específico de estrutura de empresa fantasma é a sociedade comercial internacional (IBC – na sua sigla inglesa), que é normalmente utilizada para as empresas fantasma criadas por não-residentes em centros financeiros offshore (OFC). As IBC apresentam determinadas características e vantagens que tornam as empresas fantasma ideais, já que estas não estão autorizados a exercer actividade na jurisdição onde foram constituídas e estão geralmente isentas de impostos locais sobre o rendimento.
As empresas fantasma constituem uma fracção substancial dos veículos empresariais criados em alguns OFC. Dada a sua função, as empresas fantasma estão sujeitas a um risco acrescido de serem indevidamente utilizadas.
Empresa fictícia
Uma empresa fictícia (ou de prateleira) é uma categoria de empresas fantasma, semelhante a estas, na medida em que não existe efectivamente uma empresa tradicional. Uma empresa fictícia é uma sociedade que não teve qualquer tipo de actividade. Foi criada, deixada inactiva e colocada na “prateleira”. De um modo geral, mais tarde, esta empresa é vendida a alguém que opta por adquirir uma sociedade já existente a constituir uma nova. A principal diferença entre as empresas fantasma e as fictícias reside sobretudo no ano da constituição das respectivas empresas, e o valor de uma empresa fictícia é calculado com base no historial da empresa e nas relações bancárias, para além do número de anos de existência.
Em algumas jurisdições, os procedimentos para a constituição de uma empresa podem ser morosos. Muitas vezes é mais fácil, mais rápido e menos dispendioso transferir a propriedade de uma empresa fictícia do que constituir uma nova. Por vezes, os credores só emprestam dinheiro a uma empresa que tenha sido constituída há pelo menos seis meses, podendo ir até aos dois anos, ou mais, e muitas instituições só assinam contratos com uma empresa que esteja em actividade há pelo menos dois anos.
Fundo fiduciário
O conceito de fundo fiduciário é provavelmente menos conhecido do que o conceito de empresa, mas já existe há mais tempo. O fundo fiduciário é uma relação jurídica que teve a sua origem histórica em Inglaterra e que se desenvolveu principalmente em países com tradição jurídica anglo-saxónica ou de Common Law, como por exemplo a Grã-Bretanha, EUA, Austrália, Canadá, África do Sul e Nova Zelândia. Existem estruturas semelhantes aos fundos fiduciários noutros países, por exemplo, no Japão, Panamá, Liechtenstein, México, Colômbia, Israel e Argentina.
Neste sentido, um fundo fiduciário é uma entidade sem personalidade jurídica ou relação jurídica, segundo a qual uma pessoa (o administrador do fundo fiduciário) possui activos não para seu próprio uso e benefício, mas para o benefício de outros (os "beneficiários"). Ao contrário de uma empresa, é um veículo empresarial que não tem personalidade jurídica distinta e que estabelece a diferença entre posse legal e benefício efectivo dos activos investidos num fundo fiduciário.
Os principais aspectos a ter em conta são:
- Os elementos ou intervenientes essenciais de um fundo fiduciário são o fundador, o administrador, os beneficiários e a propriedade dos fundos fiduciários.
- O fundador transfere a propriedade de determinados bens para os administradores de fundos fiduciários através de um acto constitutivo de fundo fiduciário ou declaração fiduciária (embora não tenha de ser por escrito).
- Estes activos devem ser geridos e utilizados em benefício dos beneficiários nomeados ou anónimos. Isto constitui uma obrigação.
- No processo de transferência ou “liquidação” de determinados activos, a propriedade legal ou o controlo dos activos (conhecidos como propriedade dos fundos) está separado do direito de usufruto desses bens.
Neste contexto, um beneficiário é uma pessoa nomeada para receber algo em resultado de um acordo do fundo fiduciário. Um fundo fiduciário pode ser constituído por beneficiários existentes não identificados, mas os beneficiários finais de um fundo fiduciário devem ser identificáveis. Neste caso, o fundo fiduciário confere ao administrador determinados poderes para administrar os activos, que vigoram até ao momento em que, nos termos do fundo fiduciário, um indivíduo ou grupo de indivíduos adquire o direito, como beneficiário, de receber rendimentos ou capital após o termo do prazo definido. Alguns tipos de fundo fiduciário permitem que o beneficiário seja nomeado ou alterado em qualquer altura, o que significa que a sua identidade pode ser mantida em segredo até que a propriedade dos activos lhes seja transferida.
O factor crucial para compreender os trusts reside na separação entre a propriedade legal dos activos do fundo fiduciário, que pertence ao administrador, e o direito de beneficiar desses activos, que cabe aos beneficiários. Paralelamente, é fundamental compreender que “beneficiário” e “beneficiário efectivo” têm significados diferentes (ver abaixo).
Esclarecimento sobre beneficiários efectivos de fundos fiduciários
Durante uma investigação criminal envolvendo veículos empresariais, particularmente os constituídos em jurisdições offshore, o cerne da questão para qualquer profissional é identificar o “beneficiário efectivo” do veículo empresarial, ou seja, a pessoa (ou grupo de pessoas) que detém o benefício ou o controlo sobre os activos adquiridos ilegalmente e que está a tentar ocultar o facto através da utilização indevida de veículos empresariais.
De acordo com a definição do GAFI, beneficiário efectivo refere-se à(s) pessoa(s) natural(ais) que, em última análise, possui(em) ou controla(m) um bem, e que, directa ou indirectamente, goza(m) dos seus benefícios. O beneficiário efectivo também possui ou controla o cliente e/ou a pessoa singular que aparenta possuir ou controlar o activo e em cujo nome uma transacção é realizada, a fim de ocultar a verdadeira propriedade. O termo inclui também as pessoas que exercem um controlo efectivo final duma pessoa colectiva ou organismo legal.
A característica que define o beneficiário efectivo de um activo do fundo fiduciário (por oposição a um beneficiário) é o facto de ele (ou ela) deter um grau de controlo sobre o activo, o que lhe permite beneficiar do mesmo. É irrelevante se ele é o proprietário legal, isto é, se ele detém um título legal desse activo, ou se é um beneficiário do fundo fiduciário. Acima de tudo, o beneficiário efectivo tem de ser uma pessoa singular, uma vez que uma pessoa colectiva não pode exercer um controlo “final” sobre um activo. Isto deve-se ao facto de as pessoas colectivas serem sempre controladas, directa ou indirectamente, por pessoas singulares.
No contexto de fundos fiduciários legítimos, nenhum dos seguintes se qualifica como o beneficiário efectivo, tal como previamente definido:
- O administrador exerce controlo sobre um activo mas não é o controlador final, uma vez que é legalmente obrigado a agir no interesse do beneficiário.
- O fundador constitui o fundo fiduciário e renuncia à propriedade legal dos activos desse fundo a favor do beneficiário; contudo, pode ainda continuar a exercer algum controlo ou influência sobre o fundo fiduciário.
- O beneficiário continua a retirar benefícios, mas geralmente não pode exercer qualquer tipo de controlo sobre o fundo fiduciário.
Porém, para fins de investigação criminal, o beneficiário efectivo dos fundos fiduciários pode englobar vários intervenientes: o fundador, os administradores, os beneficiários ou qualquer outra pessoa que, na prática, exerça um controlo efectivo final sobre o fundo fiduciário e goze dos seus activos adquiridos ilegalmente.
Saiba mais
- Estes temas são apresentados de forma muito (muito!) mais pormenorizada e aprofundada nos cursos de formação do ICAR, em particular no programa de formação sobre “Estruturas Offshore e Assistência Jurídica Mútua”.
- Na qualidade de Chefe da Equipa de Formação do ICAR, a autora Phyllis Atkinson desenvolveu e ministrou formação altamente especializada sobre estes e outros temas afins a investigadores, procuradores, analistas financeiros e juízes em todo o mundo. Pode obter mais informação sobre a abordagem única de formação do ICAR no seu guia rápido para uma formação eficaz em investigação financeira.
- A publicação da OCDE de 2001 Behind the Corporate Veil: using corporate entities for illicit purposes (“Por detrás do véu corporativo: utilização de entidades empresariais para fins ilícitos”) analisa o tipo de entidades empresariais mais frequentemente utilizadas de forma indevida e “insta os governos a combater este abuso, intervindo de modo a assegurar a disponibilidade de informação sobre propriedade e controlo”.
- As principais publicações do GAFI sobre este tema incluem: FATF guidance on transparency and beneficial ownership (“Directiva do GAFI sobre Transparência e Beneficiário Efectivo”, Outubro de 2014) e Best practices on beneficial ownership for legal persons (“Melhores práticas em matéria de beneficiário efectivo de pessoas colectivas”, Outubro de 2019).
- Descarregue um PDF deste guia rápido.
Um esquema de branqueamento de capitais utilizando jurisdições e estruturas offshore:
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